Um Elo Achado Da Música Brasileira
Filha e neta de grandes figuras da MPB e da boemia do Rio, Daniela Soledade não nega as origens: com sua voz doce, embala bossa, samba e jazz em A Moment of You, seu disco de estreia
Certidão de nascimento oficial da bossa nova, a gravação de Chega de Saudade feita por João Gilberto data de 1958. A bossa é uma respeitável sexagenária, portanto, o que só torna ainda mais surpreendente (e digno de celebração) o surgimento de uma talentosa representante do gênero neste começo de século XXI. Daniela Soledade é carioca, cresceu em família musical e, ainda adolescente, mudou-se para os Estados Unidos. Lá, fez high school, graduou-se na Universidade do Sul da Flórida e teve duas filhas. Por essas e outras, durante anos relegou a música, sua paixão, a “gigs” em bares da Flórida. Cantar, para ela, era um hobby frequente, praticado depois do expediente. Em 2019, a cantora lançou seu primeiro disco, A Moment of You, acolhido com críticas elogiosas na imprensa especializada americana e aplausos na turnê de lançamento. “Mostramos o trabalho em um circuito bacana, de teatros, casas de show, pelo país inteiro. Cantei na Blue Note de Nova York, agora quero cantar no Brasil”, avisa.
A Moment of You, como convém a uma obra inspirada pela bossa nova, tem clara influência do jazz e do samba, e a saborosa mistura destes ingredientes no disco é resultado de um belo encontro. Produtor e instrumentista presente em todas as faixas, o violonista americano Nate Najar é antigo admirador da música brasileira – já a celebrou em trabalhos solo, ao gravar versões próprias para clássicos como Desafinado e Aquarela do Brasil, e não esconde a inspiração que encontrou no lendário violonista americano Charlie Byrd (1925-1999), pioneiro no encontro da bossa com a música americana. “Nate é minha arma secreta”, brinca Daniela Soledade. “Quando decidi que ia me dedicar 100% à música, ele me acompanhou em uma apresentação com repertório de bossa nova. Deu muito certo e não nos desgrudamos mais. Ele é um monstro, toca muito, foi dele a ideia de gravarmos o disco”, conta a cantora.
Quando sugeriu a produção do disco, o tarimbado Nate Najar não teve dificuldades para vislumbrar um talento que veio do berço. Daniela Soledade é filha de Paulinho Soledade. Violonista, compositor e produtor requisitado, discípulo do grande Baden Powell, Paulinho já dividiu palco e estúdio com meio mundo – de Alcione a Tim Maia, passando por Dione Warwick, Baby do Brasil, Cazuza e Erasmo Carlos, entre muitos outros. A cantora também é neta de Paulo Soledade (1919-1999), uma lenda na história da boemia carioca. Entre muitos feitos, “vovô” foi fundador do folclórico Clube dos Cafajestes, dono da boate Zum Zum, um palco para a nascente bossa nova, além de parceiro de Vinicius de Moraes, Antonio Maria e Tom Jobim - com o maestro e Armando Cavalcanti, compôs Sonho Desfeito, uma das pérolas revisitadas em A Moment of You.
Da infância e do começo de adolescência passados no Rio, Daniela guarda como lembranças musicais mais antigas as gravações no estúdio caseiro do pai. “Ele me gravava, eu devia ter uns 3 anos, era uma curtição, lembro de ter feito (a campanha) Criança Esperança, de ter gravado voz para as Paquitas, no Xou da Xuxa, algo assim”, puxa pela memória. A coisa ficou mais sériaquando, aos 13 anos, a menina entrou para a Escola de Música Villa-Lobos. Estudou teoria e história musical, além de flauta, com um instrumento emprestado por alguém próximo da família – a flauta pertencia a Bebeto Castilho, um dos craques do histórico Tamba Trio, um dos grandes nomes do samba-jazz.
No começo da adolescência, a dona dessa rica história mudou-se com a família para os Estados Unidos. “Acabei me afastando da música, seguindo outros caminhos, mas nunca deixei de sentir falta”, conta. A saudade, aplacada de tempos em tempos com shows em bares, casamentos e outros eventos, terminou em 2019, quando Daniela lançou seu disco de estreia e abraçou de vez a carreira artística. “No ano passado pensei: agora é a hora, vou voltar com tudo”. A boa acolhida ao disco foi o primeiro sinal de que ela estava fazendo a coisa certa. “Cantando em português e inglês, o álbum de estreia de Daniela Soledade exibe seu domíniodo samba clássico e de standards da bossa nova, com algumas prazerosas surpresas”, elogia, já na primeira frase, crítica publicada na conceituada revista de jazz Downbeat. O apoio da imprensa facilitou a montagem de uma turnê pelos Estados Unidos com escalas em palcos ilustres, a exemplo do já citado Blue Note de Nova York.
Nas dez faixas do disco A Moment of You, pérolas de tempos e gêneros distintos ganham a voz doce de Daniela Soledade e arranjos de sofisticação jazzística, mais em prol da beleza do que de arroubos virtuosísticos. Um sentimento de elegância sem fronteiras une The Man I Love, dos irmãos Gershwin, a Eu Sambo Mesmo, clássico antigo de Janet de Almeida (foi gravado pela primeira vez em 1946) e uma das canções favoritas de João Gilberto. No disco, a bossa marca presença com Someone to Light Up My Life, versão em inglês de Se Todos Fossem Iguais a Você, parceria de estreia de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Safely in Your Arms, suave composição em inglês lançada por Marcos Valle em 1968, e na pouco conhecida Dunas, de Rosa Passos.
A família Soledade comparece em peso: estão no álbum a bela Sonho Desfeito, parceria do vô Paulo com Tom Jobim e Armando Cavalcanti, Song for Baden, tributo de Paulinho Soledade a seu mestre do violão Baden Powell (gravada com o próprio Paulinho no violão solo, o virtuoso baterista brasileiro Duduka da Fonseca e, em palinha afetiva, Maucha Adnet na percussão), e Ninho, composição assinada por Daniela. Duas adoráveis surpresas completam o álbum. Uma delas, I Wish You Love, a última faixa, versão do sucesso francês Que Reste-t-il de Nos Amours?, de Charles Trenet, ganhou dueto de voz e violão com Daniela e Nate Najar. A segunda, Veja Bem meu Bem, hit da banda de pop-rock Los Hermanos, lançado no disco Bloco do Eu Sozinho (2001), caiu como uma luva na seleção das canções. “Nossa gravação de Veja Bem meu Bem foi incluída pelo Spofity em uma playlist do aplicativo e já ultrapassou as 70.000 execuções”, comemora uma empolgada Daniela Soledade, definitivamente fisgada pelo mundo da música.
BIOGRAFIA CURTA
Filha e neta de importantes artistas da MPB, Daniela Soledade debuta em disco nos Estados Unidos, conquista críticas elogiosas e vem para o Brasil mostrar que não voltou americanizada
Daniela Soledade pertence à terceira geração de um respeitável clã musical. Seu avô, Paulo Soledade (1919-1999), uma lenda na história da boemia carioca, foi parceiro de Tom Jobim e de Vinicius de Moraes. Seu pai, Paulinho Soledade, teve que ser emancipado aos 13 anos para seguir carreira musical, tornou-se requisitado violonista e produtor e acompanhou uma constelação – a lista de estrelas com quem já dividiu palco ou estúdio vai de Alcione a Tim Maia, passando por Dione Warwick, Baby do Brasil, Cazuza e Erasmo Carlos, entre muitos outros. Curiosamente, o reencontro em grande estilo da cantora com esta rica herança se deu nos Estados Unidos, onde mora há anos. Após um longo período tratando a música quase como um hobby (querido, mas um hobby), matando as saudades em palcos de bares e casamentos, ela lançou seu primeiro disco, A Moment of You, no ano passado. A resposta foi rápida e tremendamente positiva. Críticas elogiosas – uma delas publicada na prestigiada revista de jazz Downbeat – e a agenda da turnê de lançamento americana ocupada por espaços nobres, a exemplo do Blue Note de Nova York, sinalizam o óbvio: nasce uma estrela.
Ao longo das dez faixas do álbum, Daniela concilia a influência familiar com atributos só seus: a intérprete carioca, ex-aluna da Escola de Música Villa-Lobos, empresta a voz suave e seu total domínio da divisão rítmica ao repertório escolhido, uma seleção de pérolas de tempos e latitudes variados. A lista vai do standard The Man I Love, dos irmãos Gershwin, à balançante Eu Sambo Mesmo, antiguidade de Janet de Almeida já gravada por João Gilberto, passando por Someone to Light Up My Life (versão em inglês do hino da bossa Se Todos Fossem Iguais a Você, parceria inaugural de Tom e Vinicius). Tem muito mais: fogem do óbvio temas como Song for Baden, composição de Paulinho Soledade – com letra da filha – em homenagem a seu professor de violão (o grande Baden Powell), a sussurrante Safely in Your Arms, do craque Marcos Valle, e outra relíquia: Sonho Desfeito, assinada pelo avô Paulo Soledade, ao lado de Tom Jobim e Armando Cavalcanti.
“O que une todas essas canções é o tom entre a bossa e o jazz que nós buscamos no disco”, explica Daniela. Ao usar a primeira pessoa do plural, Daniela refere-se a Nate Najar, o produtor do álbum. O violonista americano Najar tem sólida carreira solo e uma antiga paixão pela música brasileira, influência de um de seus maiores mestres: o consagrado violonista Charlie Byrd (1925-1999), parceiro do saxofonista Stan Getz na gravação do LP Jazz Samba (1962), pioneiro encontro da bossa com a música americana. “O Nate tem esse background, além de ser um monstro das cordas. Quando começamos a nos apresentar juntos ele sugeriu a gravação do disco e eu decidi que era hora de, finalmente, me dedicar 100% à música”, lembra a cantora. Carioca, filha e neta de nomes importantes da MPB, Daniela Soledade leva adiante o melhor da música brasileira – e, de quebra, tem muito para contar. “Não resisto, ao vivo sempre lembro histórias narradas pelo meu pai, lembranças das aulas de violão com Baden, horas de música e conversa regadas a uísque, ou do Vinicius dormindo no tapete da sala, na casa do meu avô”, diz, envolvida em doce nostalgia.